terça-feira, 25 de março de 2014

Da amizade. Que pode nascer de um Pede Salsa.

Foi o Tiago quem primeiro nos falou dela. Tínhamos começado há pouco tempo esta maluqueira do Pede Salsa. Depois de encomendar cabazes há duas ou três semanas, pediu-nos que entregássemos um em casa da sua avó. Deu-nos o nome, a morada e o número de telefone. Avisou-nos que ela não usava email. Na véspera da entrega ligámos a confirmar a hora. Disse-nos que estaria à nossa espera. E estava. Com o pagamento preparado desde o telefonema, apostamos. Ficou encantada com o cabaz. E nós com ela.

Não havíamos percebido, ao telefone, que tinha tantos anos. Mais de 90! Mas que não nos impressionássemos! Que fazia ginástica todos os dias e que estava ainda cheia de genica. E sozinha em casa. Oferecemo-nos para tirar os legumes e frutas da caixa. Podíamos atrasar-nos cinco minutos, não viria por isso mal ao mundo. Arrumámos as batatas e as cebolas no cesto próprio, enquanto ouvíamos a primeira história.

Passámos a chamá-la avó Amanda. Porque era a avó do Tiago e tinha idade para ser nossa avó. Mas também porque nos adoptou. Falava connosco como uma avó fala com os netos. Tratava-nos como se nos conhecesse desde sempre. “Querido” e “querida”, numa voz adocicada pela idade, sempre antes de Rodrigo e Ana. Mandava sempre abraços para o outro, de cada vez que um de nós aparecia. Mas não era lamechas, nem picuinhas, como às vezes são as avós. Era enxuta e despachada, mesmo sendo tão afectuosa. Enquanto nos dava dois beijinhos, apertava-nos as mãos com uma força surpreendente para a idade!

Passado pouco tempo, deixou de ser preciso o Tiago fazer a encomenda por email. Queria o cabaz todas as semanas. “Então o que me trazes hoje?”
Descobrimos-lhe os gostos. Não só que preferia a alface roxa, por ser mais tenra que a verde. Mas também que adorava, desde sempre, ir aos concertos da Gulbenkian. Ainda com o marido vivo, tinham o passe duplo para a temporada, ano após ano. A música era o seu vício, dizia. 
Professora de matemática. Por paixão, sublinhou. Aventureira. Destemida. Muito à frente no seu tempo. Desenhou a sua casa de férias no Algarve. Acampou nos Pirinéus. Fez o transiberiano com amigos da Associação Portugal-URSS.   

Todas as semanas descobríamos mais um bocadinho de si, porque todas as semanas nos contava mais uma história. Enquanto lhe arrumávamos as batatas e as cebolas. “Tens tempo?” perguntava. Sim, podíamos sempre atrasar-nos cinco minutos, não viria por isso mal ao mundo. Mesmo que fosse apenas para ouvi-la nomear cada fruta e legume, admirando-os demoradamente, cheirando-os e planeando o que faria com eles. E fomos percebendo que esta maluqueira nos podia levar a conhecer pessoas assim, espantosas! E a fazer amigos, mais do que clientes.

Sabíamos que as sextas-feiras eram para si dias especiais porque eram dias de Gulbenkian, mas também porque eram dias de cabaz. Numa delas convidou o Rodrigo, que conversava com ela sobre compositores, para a acompanhar a um concerto. Com dois meses de antecedência, pois gostava de tudo planeado com tempo. Não chegou a acontecer, a doença estragou-lhe os planos. Mas ofereceu os bilhetes ao Rodrigo.

Um dia disse “Ainda bem que o Tiago vos pôs no meu caminho!” E dessa vez demos um abraço mais demorado.

Da última vez que a vi parecia um passarinho frágil. Nunca vou esquecer o seu sorriso e o tom com que disse Aaaana! no momento em que me reconheceu. Hoje soube que morreu.


Ainda bem que o Tiago a pôs no nosso caminho, querida avó Amanda. Vamos ter muitas saudades suas e das suas histórias. E vamos guardar para si, sempre, a melhor alface roxa. 


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