Foi o Tiago quem primeiro nos falou dela.
Tínhamos começado há pouco tempo esta maluqueira do Pede Salsa. Depois de
encomendar cabazes há duas ou três semanas, pediu-nos que entregássemos um em
casa da sua avó. Deu-nos o nome, a morada e o número de telefone. Avisou-nos
que ela não usava email. Na véspera da entrega ligámos a confirmar a
hora. Disse-nos que estaria à nossa espera. E estava. Com o pagamento preparado desde o telefonema, apostamos. Ficou encantada com o cabaz. E nós com ela.
Não havíamos percebido, ao telefone, que tinha
tantos anos. Mais de 90! Mas que não nos impressionássemos! Que fazia ginástica
todos os dias e que estava ainda cheia de genica. E sozinha em casa. Oferecemo-nos
para tirar os legumes e frutas da caixa. Podíamos atrasar-nos cinco minutos,
não viria por isso mal ao mundo. Arrumámos as batatas e as cebolas no cesto
próprio, enquanto ouvíamos a primeira história.
Passámos a chamá-la avó Amanda. Porque era a
avó do Tiago e tinha idade para ser nossa avó. Mas também porque nos adoptou.
Falava connosco como uma avó fala com os netos. Tratava-nos como se nos
conhecesse desde sempre. “Querido” e “querida”, numa voz adocicada pela idade,
sempre antes de Rodrigo e Ana. Mandava sempre abraços para o outro, de cada vez
que um de nós aparecia. Mas não era lamechas, nem picuinhas, como às vezes são
as avós. Era enxuta e despachada, mesmo sendo tão afectuosa. Enquanto nos dava
dois beijinhos, apertava-nos as mãos com uma força surpreendente para a idade!
Passado pouco tempo, deixou de ser preciso o
Tiago fazer a encomenda por email. Queria o cabaz todas as semanas. “Então o
que me trazes hoje?”
Descobrimos-lhe os gostos. Não só que preferia
a alface roxa, por ser mais tenra que a verde. Mas também que adorava, desde
sempre, ir aos concertos da Gulbenkian. Ainda com o marido vivo, tinham o passe
duplo para a temporada, ano após ano. A música era o seu vício, dizia.
Professora de matemática. Por paixão, sublinhou. Aventureira. Destemida. Muito à frente no seu tempo. Desenhou a sua casa de férias
no Algarve. Acampou nos Pirinéus. Fez o transiberiano com amigos da Associação Portugal-URSS.
Todas as semanas descobríamos mais um
bocadinho de si, porque todas as semanas nos contava mais uma história. Enquanto lhe arrumávamos as batatas e as cebolas. “Tens tempo?” perguntava.
Sim, podíamos sempre atrasar-nos cinco minutos, não viria por isso mal ao mundo.
Mesmo que fosse apenas para ouvi-la nomear cada fruta e legume, admirando-os
demoradamente, cheirando-os e planeando o que faria com eles. E fomos percebendo que esta maluqueira nos
podia levar a conhecer pessoas assim, espantosas! E a fazer amigos, mais do que
clientes.
Sabíamos que as sextas-feiras eram para si dias especiais porque eram dias de Gulbenkian, mas também porque eram dias de cabaz. Numa delas convidou o Rodrigo, que conversava com ela sobre compositores, para a acompanhar a um concerto. Com dois meses de antecedência, pois gostava de tudo planeado com tempo. Não chegou a acontecer, a doença estragou-lhe os planos. Mas ofereceu os bilhetes ao Rodrigo.
Um dia disse “Ainda bem que o Tiago vos pôs no
meu caminho!” E dessa vez demos um abraço mais demorado.
Da última vez que a vi parecia um passarinho
frágil. Nunca vou esquecer o seu sorriso e o tom com que disse Aaaana! no
momento em que me reconheceu. Hoje soube que morreu.
Ainda bem que o Tiago a pôs no nosso caminho, querida
avó Amanda. Vamos ter muitas saudades suas e das suas histórias. E vamos guardar para
si, sempre, a melhor alface roxa.